Thursday, June 07, 2007

A minha primeira entrevista a Mão Morta

Os Mão Morta estrearam recentemente um espectáculo alicerçado numa obra polémica que juntou música, teatro, vídeo e declamação. Adaptaram, assim, “Os Cantos de Maldoror”, de Isidore Ducasse, sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, livro fetiche da banda há muitos anos.


AG - Quais foram os critérios de selecção dos excertos?

MM - A ideia foi abarcar algumas das características literárias da obra e simultaneamente o seu ambiente negro. Assim, escolheram-se excertos que espelhavam a indefinição de vozes entre narrador, personagem e autor, outros que patenteavam a ironia e o distanciamento da escrita, outros que introduziam técnicas como a repetição, a colagem, o automatismo, outros ainda que gozavam com os clichés do romantismo – as comparações, o vampirismo, a morbidez… No entanto, tendo em mente não ultrapassar os limites do suportável, quer em duração quer em concentração, mas mantendo o carácter fragmentário do livro, optou-se ainda por escolher matéria que fosse também susceptível de ser transformada em brincadeira infantil, plasticamente manobrável.



AG - Enquanto umas partes foram apenas declamadas, outras foram musicadas. Porquê essa distinção?

MM - Todas as partes foram musicadas. Mesmo o excerto da “Poção”, que é o que mais se aproxima da declamação a seco, tem um som de fundo. Por outro lado, apenas o excerto da “Porcaria” apresenta algumas características próprias de canção, como o refrão.

AG - Visto terem adiado muito tempo a adaptação da obra, porque é que sentiram que esta era a melhor altura para concretizar este projecto?

MM - Nós nunca adiamos a ideia deste espectáculo. Começou por ser uma ideia do Miguel Pedro, que demorou muito tempo – oito anos – a conseguir convencer o resto do grupo… Eu pessoalmente achava muito difícil sacar do livro Os Cantos de Maldoror, pela sua complexidade, uma outra obra que, sem trair a original, fosse artisticamente interessante. E efectivamente foi difícil, sobretudo encontrar o mecanismo que permitiu passar do universo e da linguagem literária, que faz toda a riqueza dos Cantos, para um outro universo e outra linguagem, neste caso musical e performativa. Nisso gastei quase um ano, numa aparente letargia improdutiva. Aproveitando o facto dos Mão Morta, no final de 2005, terem decidido repousar uma temporada, o Miguel Pedro conseguiu o anuimento colectivo para, nesse entretanto, se pensar em fazer a adaptação do livro para palco – concordância que foi mais para calar o Miguel Pedro do que para trabalhar a sério no assunto, até porque não existiam condições materiais que permitissem concretizar tal transposição!... No entanto, o Paulo Brandão, mal foi indigitado programador do novo Theatro Circo, convidou-nos a apresentar um espectáculo especial para a inauguração da sala e de repente o Maldoror – por nós proposto porque, depois do sim ao Miguel, era o que tínhamos em mão – tinha pernas para andar e uma obrigação em ser feito… Ainda foi adiado, por absoluta impossibilidade de o ter pronto na data prevista (Outubro de 2006), primeiro para Dezembro desse ano e depois para Fevereiro de 2007, mas finalmente estreou em Maio.


AG - “Os Cantos de Maldoror” é um livro que obriga a muita reflexão posterior e até a várias leituras. O que realmente desejam que este espectáculo fomente nos espíritos a que ele assistem?

MM - Àqueles que conhecem o livro, que tenham a sua experiência sensorial. Aos outros, que nunca leram ou nunca ouviram sequer falar de Os Cantos de Maldoror, que lhes desperte a curiosidade para nele se aventurarem…



AG - Particularmente nos excertos escolhidos reina o caos, o absurdo, a animalidade. Em termos musicais, como reuniram o rock com a electrónica para transmitir essa esfera aparentemente anárquica?

MM - O Miguel Pedro, autor da quase totalidade das músicas, seria a pessoa ideal para responder… Posso apenas adiantar que houve a preocupação em reflectir musicalmente algumas das características literárias: a repetição, o desvio, a manobra de diversão… E, claro, criar o ambiente pretendido para cada um dos quadros!


AG - Neste livro, não há uma narrativa, mas sim pedaços narrativos que se entrechocam, num turbilhão descritivo e dialogístico. Acabaram por dar unidade através de um cenário próprio e um figurino característico e animalesco. Podem descrever-nos esse ambiente e o trabalho desenvolvido pelo António Durães e pela Cláudia Ribeiro?

MM - O ponto de partida, o tal mecanismo que permitiu passar do nível literário do livro para a linguagem performativa e musical do palco, foi achar o personagem criança, com a sua capacidade inata de transmutação quer dos objectos quer da narração, sobretudo das vozes da narração, e assim fazer confluir toda a dispersão narrativa (e que é uma característica do próprio livro) para um espaço fechado, que é o quarto de brinquedos ou de brincadeiras, o que permitia dar unidade ao caos e suster a fragmentação desordenada que essa dispersão narrativa tenderia a provocar – no livro, essa unidade é conseguida pelo turbilhão da própria escrita, que nos remete para um centro sempre fugidio, uma espécie de olho de furacão que nos suga em permanência, efeito impossível de transpor para palco. Encontrada a criança e o quarto de brinquedos, o trabalho dos diversos intervenientes foi o desenvolvimento, nas respectivas áreas, de algumas características que consideraram mais interessantes ou apelativas. A Cláudia Ribeiro, por exemplo, explorou nos figurinos a estética Manga que está hoje omnipresente em qualquer espaço infantil, seja através da banda desenhada, dos filmes ou dos jogos electrónicos. Já o António Durães, sempre com a produção à perna para lhe controlar os custos, fez malabarismos para explorar a ideia de duplicidade, do fora e dentro, que é algo presente no livro e também na imaginação infantil, recorrendo ao vídeo e às suas possibilidades falaciosas e fabuladoras para acentuar essa dupla realidade.

AG - Quanto à multimedialidade inerente ao espectáculo, também pretendeu traduzir essa interacção que Isidore Ducasse criava com o leitor?

MM -
O vídeo participa, por um lado, na criação das múltiplas vozes que se digladiam no livro – narrador, personagem, autor, pseudónimo – e também no espectáculo, funcionando como mais uma voz, e cumpre o papel, por outro lado, de duplicador do real, quer distorcendo-o pela ampliação de pormenores, quer mostrando o invisível porque imaginado ou porque fora do espaço ou do tempo da acção, e ainda, ao interagir, pela sua presença, com as brincadeiras da criança e com as vozes que assume, rompe o ténue véu que separa as duas realidades – como no entrecruzar de dois espaços-tempo – e concorre para o clima de estranheza que se quer instalado.


AG - Afirmaram que iria sair um DVD dependendo das gravações dos espectáculos. Sempre vai sair como estava previsto, ou vai ganhar outros contornos?

MM - Há-de sair um CD e um DVD. Tanto os espectáculos como as gravações e as filmagens correram bem, pelo que não há motivo para esse material não ser editado. O CD sairá provavelmente ainda este ano, talvez em Setembro, numa edição limitada, a exemplo do que aconteceu com o CD do Müller no Hotel Hessischer Hof. O DVD sairá só depois de acabadas as apresentações do espectáculo, em 2008, uma vez que continuam a ser filmadas as deslocações e todo o ambiente da sua montagem, com vista a um documentário que acompanhará como extra o filme do espectáculo propriamente dito.


AG - O que diria Isidore Ducasse sobre este espectáculo?

MM - Não faço a mínima ideia.


AG - Sentem que evoluíram desde “Müller no Hotel Hessischer Hof”, o primeiro espectáculo dos Mão Morta a partir de uma adaptação literária, ou são apenas representações de almas diferentes?

MM - A evolução é uma constante da vida e mau era se isso não tivesse acontecido, a todos os níveis, num período de dez anos! Os graus de exigência do Müller no Hotel Hessischer Hof e deste Maldoror são completamente diferentes e a consciência disso levou-nos a chamar outros intervenientes para a criação deste espectáculo – e só o facto de termos consciência da necessidade de nos rodearmos dos talentos de outras pessoas para levarmos a bom termo este projecto já é, em si, um sinal de evolução. O Müller no Hotel Hessischer Hof foi um trabalho que se baseou muito na intuição e que felizmente correu bem, mas a intuição não era suficiente para dar resposta às exigências e aos problemas que levantava o Maldoror, havia que recorrer a conhecimentos técnicos e capacidades específicas, nomeadamente na área da encenação, para, no mínimo, alcançar o mesmo grau de satisfação artística obtido com o Müller no Hotel Hessischer Hof. E agora, que o espectáculo estreou e tem sido um êxito, torna-se ainda mais evidente que o resultado não teria sido alcançado sem a competência e a sumidade do António Durães, da Cláudia Ribeiro, do Pedro Tudela ou do Nuno Tudela.



AG - O Theatro Circo, em Braga, está a funcionar com um pólo cultural agregador. Pensam que as pessoas estão mais atomizadas e que estes espectáculos podem ser uma forma de alimentar o espírito crítico? Sentem que, hoje em dia, nos falta uma espécie de “Conferências do Casino”? O que se pode fazer contra o marasmo cultural?

MM - A única opção é fazer: música, teatro, pintura, pouco importa a área, importa é fazer! E ver o que os outros fazem, aprender com eles – aprende-se sempre, quanto mais não seja pelo negativo. Só a vontade inquebrável em fazer, e em mostrar o que se faz, pode derrotar a atomização social e o marasmo cultural e, qual mancha de óleo, alastrar pelo colectivo o desejo da participação.


AG - Por fim, o que pensam do projecto AGaragem.com, como site de divulgação e promoção de bandas de garagem?

MM - Bem, pensamos bem!


Entrevista: Sara Santos Silva

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